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Que o teu alimento seja o teu remédio e que o teu remédio seja o teu alimento

Por Claudia R. C. Moreno, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP

A frase que dá título à essa coluna foi atribuída a Hipócrates há mais de 2 mil anos. Outras frases com significado semelhante têm sido muito utilizadas popularmente, como “Você é o que você come” e “Sua saúde depende da sua dieta”, para dar apenas dois exemplos. Seja qual for o provérbio ou dito popular, o que importa é que a relação entre a saúde e a qualidade da alimentação é reconhecida não apenas cientificamente, mas também faz parte do repertório popular. Entretanto, há avanços que ainda não são tão conhecidos e divulgados para a sociedade, os quais dizem respeito tanto ao conteúdo de uma dieta saudável quanto ao momento de se alimentar. Em relação ao conteúdo, vale mencionar o Guia Alimentar para a População Brasileira. O Guia é um instrumento que vem sendo utilizado em diversas políticas públicas como norteador de uma dieta adequada e saudável, de acordo com os padrões alimentares e culturais do país. Publicado originalmente em 2006, o guia foi revisto e atualizado em 2014. A mudança mais marcante deste documento é o estabelecimento de uma dieta saudável a partir de uma classificação dos alimentos baseada no processamento industrial dos alimentos ao qual estes são submetidos.

Além disso, leva em consideração fatores também relacionados com a saúde como as preparações culinárias ou refeições e a comensalidade. São evidentes o avanço científico e a consequente reflexão por trás desse novo olhar à alimentação.

 Os modos de processar, preparar e comer o alimento passaram a ser claramente reconhecidos como fatores que influenciam a saúde. Mas é preciso acrescentar à supramencionada lista a hora do dia em que o alimento é ingerido. Basicamente, há dois pontos que devem ser considerados em relação ao horário da alimentação, dos quais já se têm evidências significativas. O primeiro é que alterações no sistema temporal circadiano, que levem a um desalinhamento circadiano entre o ambiente interno e o externo ao organismo afetam o metabolismo alimentar, como a digestão e a absorção dos alimentos, assim como o metabolismo energético. Alterações metabólicas contribuem para o ganho de peso, obesidade e desenvolvimento de síndrome metabólica, dentre outros problemas de saúde. O segundo ponto diz respeito ao efeito da alimentação programada, isto é, com restrição do tempo de alimentação. Este protocolo foi inicialmente estudado em modelos animais e previa a alimentação em horários específicos de forma a produzir uma resposta antecipatória dos animais em busca de alimento. Conhecido como food anticipatory activity (FAA), esse protocolo levava a um avanço de fase dos ritmos endógenos, especialmente em osciladores periféricos, como os órgãos envolvidos em processos de digestão e absorção alimentar. Atualmente, há vários estudos publicados em que se observaram mudanças circadianas tanto no sistema digestório quanto no metabolismo a partir da alteração dos horários de ingestão alimentar. A restrição do tempo para se alimentar (ou janela alimentar) atuaria como um fator de proteção à obesidade e disfunções metabólicas.

Mas qual é a relação de tudo isso com o sono? Processos metabólicos são regulados não apenas por ritmos de alimentação e jejum, mas também pelo ciclo vigília-sono e pela exposição à luz. Assim, há na literatura estudos que buscam na janela alimentar não apenas a perda de peso como também a melhoria na qualidade de sono. Porém, nem todos os resultados atenderam a expectativa dos pesquisadores. Em 2019, foi realizado um estudo com o objetivo de avaliar os efeitos de uma janela alimentar de 8 horas por dia no sono de indivíduos obesos. No entanto, medidas subjetivas de qualidade, duração e horários de sono não foram alterados, demonstrando a ausência de efeito da janela alimentar no padrão de sono. Por outro lado, segundo os autores de um recente estudo de revisão, a hipótese sobre a eficácia da janela alimentar em distúrbios metabólicos é que a imposição de ciclos de alimentação/jejum restaura a sincronização circadiana e melhora a homeostase metabólica. Resultados positivos do uso da janela alimentar foram observados somente quando essa estratégia está alinhada com o sistema temporal circadiano. Em outras palavras, a janela alimentar parece ser eficiente se realizada durante o dia, até às seis da tarde, na fase de atividade do organismo.

Nesse caso, a janela alimentar contribuiria para a redução do risco para doenças cardiometabólicas pela perda de peso e também pela redução de outros fatores de risco cardiovasculares. Por outro lado, o papel sincronizador da janela alimentar ainda não está claramente evidenciado. Outro aspecto que tem sido explorado é o intervalo entre a última refeição antes de dormir à noite. Recentemente, estudamos fatores de risco para doenças metabólicas em mulheres que trabalhavam à noite. Nós observamos que um intervalo maior que 2 h entre a última refeição e o início do sono estava associado a níveis mais elevados de colesterol de lipoproteína de alta densidade (HDL, conhecido também como “bom” colesterol). Este resultado reforça a hipótese de que as refeições não devem ser realizadas próximas ao horário de dormir, demonstrando a complexidade da relação entre alimentação e sono. Acredito que há muito a ser explorado na área da crononutrição, particularmente no que se refere ao consumo de alimentos processados em diferentes horas do dia e antes de dormir. Em breve, novas pesquisas deverão surgir nesse contexto. Enquanto aguardamos por esses resultados, termino a coluna comentando o meu estudo predileto nesse campo. Conduzido por um time de pesquisadores fantástico, o estudo teve o objetivo de avaliar o impacto no peso corporal e balanço enérgico do horário de ingestão de uma barra de 100 g de chocolate por dia durante 14 dias. Os participantes comiam o chocolate de manhã ou à noite (cerca de 1 hora antes de dormir). Os resultados mostraram que o consumo de chocolate diminuiu a fome e o desejo por doces. Além disso, consumir 100 g de chocolate reduziu a ingestão de energia em cerca de 300 kcal/dia quando o consumo era realizado de manhã e cerca de 150 kcal/dia à noite. O consumo do chocolate à noite aumentou a regularidade dos episódios de sono (com menor variabilidade do início do sono). Os resultados mostraram ainda que a ingestão de chocolate não aumentou o peso corporal. Não disse que o time era fantástico?

Referencias bibliográficas:

Gabel et al. Appl Physiol Nutr Metab, 2019.

Charlot et al. Nutrients, 2021. Garrido et al. Nutrition, 2021.

Hernández-González et al. FASEB J., 2021.

Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014