Contra a alegria solar dos zumbis
Nestes incontáveis dias, a angústia e o cansaço emocional nos intrigam, tornando-se difícil de assimilar. José Miguel explicita como as diferenças de classe vêm a calhar em todo momento: por dentro do Pacaembu, mortes e ruínas; por fora, branquitude tomando sol na praça. Essa concatenação mostra quando realmente a pandemia acabará: quando a necropolítica e genocídios forem derrotados.
León dorme. Vamos a completar os 3 meses de quarentena… 100 dias de Covid19 aqui em São Paulo e no Brasil.
Estamos mais cansados, mais tristes. Nestes dias entendemos que não sairemos tão cedo assim… León voltar pra creche? Como? Como imaginar algo assim? Como imaginá-lo num pula-pula de festa ou andando livre na sua bicicleta e pulando e caindo no chão e subindo nas muretas dos prédios como o ensinamos? Como imaginá-lo com um bando de outras bestiecillas selvagens fazendo artes ou lambança ou aprendendo numa sala de aula? León com ansiedade crescente nesse apartamento frio, pequeno, sem sol. O meu cansaço é da falta de sol, das rotinas da higiene, da imobilização das minhas pernas, do excesso de trabalho reprodutivo -tanto doméstico quanto acadêmico; a minha tristeza é pela brutal desigualdade das mortes, pelo mundo que só piora, pelo país que afunda destrozado.
E sou absolutamente privilegiado, eu sei.
Essa descrição das minhas tristezas, cansaços e angústias marca um profundo descompasso que é efeito do pandemônio desse país. Eis que a tristeza -que eu chamo de lucidez e de sanidade emocional- vai se tornando loucura. Domingo passado voltava de Uber de deixar o León com Márcia. Era uma tarde de sol, linda, quente, e eu levava dias passando frio dentro de casa. Havíamos compartilhado angústias, como sempre nestes dias. Como sempre, quando passo pelo Pacaembu entro numa viagem fabulativa sobre o interior do hospital de campanha, sobre as vidas que morrem ali em extrema solidão, sobre o medo de ter que cair ali um dia, sobre as pessoas que estão trabalhando naquela floresta do fim-do-mundo, sobre a possibilidade de conhecer melhor as vidas e mortes que se cruzam ali, sobre como esse lugar ficará repovoado de almas tristes…. Mas dessa vez a minha fabulação foi interrompida com uma violência inigualável.
Sob o sol de domingo, famílias inteiras e outros grupos se divertiam alegremente sob o céu azul do estacionamento do estádio -que Bárbara disse que se chama praça Charles Miller-, à porta do Pacaembu. Claro, gente branca de pele ao sol. Jogavam bola com a criançada toda, corriam, faziam exercício em grupos, deliciavam seus piqueniques… A praça estava bastante cheia, solar, feliz, linda, alegre, vital. À porta do estádio-hospital.
E lá dentro? Lá dentro era o país inteiro morrendo. Lá dentro o mundo que eu levo dentro… A imagem das duas classes sociais do pós-capitalismo extrativista me apavorou novamente, e o fez na melancolia respiratória de saber-me parte de uma: a que tem mais capacidade de não morrer. Desde pequeno aprendi que o custo do meu descanso, do meu ócio especulativo e criativo, da minha saúde, é o trabalho de mais alguém. Aprendi depois que o meu descompromisso com a guerra era o compromisso ou a fatalidade de mais alguém. Você aprende essas coisas, sem que tudo vire ao avesso; essas coisas vão pros sonhos, pra velhice entristecida, pra tristeza… Bem, o preço dessas pessoas estarem aí fora, ao sol, na intensa alegria que aparecia, é alguma combinação exata entre as vidas que morrem dentro, as vidas que morrem fora correndo atrás do sustento, as vidas das e dos trabalhadores da saúde, as vidas assustadas e encerradas -como a do León, as vidas desperdiçadas servindo os patrões…
Lá fora era a obscenidade da classe, da branquitude, do vitalismo; a prepotência da obscenidade. Nenhuma dessas pessoas era capaz de imaginar que estava brincando num campo santo? Que no sustento do barulho das suas risadas estava o gemido dos respiradores largando a vida de alguém? Talvez essas pessoas jamais viveram, leram ou imaginaram um território sagrado marcado pela morte massiva… Talvez tanta gente aqui no Brasil não sabe o que é isso. Ninguém ali sentia o trânsito implacável e massivo da morte percorrendo exatamente o mesmo espaço? Está o menino Miguel e estão os brancos jogando bola na frente do Pacaembu curtindo um domingo de sol. Dentre muitas, essa imagem é próxima e cruel o suficiente para descrever a tristeza do presente e dos tempos por vir nesse país… Não temos volta atrás.
O país afunda na maior das catástrofes, no maior dos genocídios recentes e concentrados no tempo, no descontrole absoluto da pandemia. Era o país melhor preparado da América para receber o nosso superagente social SarsCoV-2. Descontrole não por incapacidade, mas por perversão, por aproveitamento, como tem ficado a cada dia mais claro. Nem temos mais palavras para o que vem acontecendo e, muito menos, para o que está começando a se tornar, mas insistimos na já insuficiente Necropolítica. Essa noite o site do Ministério da Saúde foi tirado do ar, dados e métodos alterados, as cifras ocultadas. O vírus se tornou o melhor aliado de um projeto de país que aposta na morte dos rebanhos e, por tanto, na configuração da humanidade-aqui como rebanho.
Mas rebanho é uma palavra leve, inocente, bucólica. A imagem é outra: o pós-capitalismo extrativista que se expande pelo mundo e que tomou conta do projeto nacional brasileiro não precisa e nem cria rebanhos-humanos-para-o-matadouro; precisa da força agonística de trabalhadores e trabalhadoras à beira da miséria e da morte. Sempre à beira. Sonho importado diretamente do Brasil dos anos 60-70. Não precisa de rebanhos, precisa de lobos da estepe, de caçadores, de pioneiros, de pessoas desesperadas, com trabalho mas sem direitos, como foi dito explicitamente. Com trabalho, mas sem nenhuma garantia de vida, saúde, segurança ou educação. O modelo: Carajás-Carandiru-Transamazônica, educação pela Polícia Militar, soldadinhos da guerra contra/de o tráfico, guerreiros do Senhor, Israel na indústria, na guerra e na praga. A Besta-Fera brasileira emerge fardada de um buraco de minhoca, monstruosidade alimentada na simultaneidade dos piores tempos históricos, restaurada e morta, assassina e vitalista, crente e negacionista, patrioteira e servil, e, ansiosa por acabar com tudo nos seus primeiros-últimos respiros, alia escrotos, robôs e vírus.
Duas classes: a outra, aquela em que vivo, precisa aprender a comandar esse povo. Precisa aprender a saber o que vai fazer com o genocídio: desdém, filantropia, obscena melancolia, franca ignorância, prazer, orgulho de carnívoro ou de príncipe de mãos limpas. Nada novo. Na quinta-feira a imagem de domingo se replicou quando voltei a sair de casa para ir no supermercado. Dessa vez, com garoa. A rua cheia, os ônibus, as pessoas em grupos fumando um cigarro, os carros ensaiando pequenos engarrafamentos. Muita gente indo trabalhar. E no supermercado era tudo completamente diferente ao que eu tinha visto nos últimos 3 meses. Sob a música de “felicidade” que toca uma e outra vez a sensação era de primavera, de retorno, e então de loucura. Evidentemente muitos funcionários haviam voltado aos seus serviços de ajustar pequenas imperfeições na apresentação dos corredores (fiquei feliz porque eles deveriam estar ganhando dinheiro de novo); evidentemente o supermercado estava de novo bastante abastecido, havia mais luxos e variedades para exercer de volta o sagrado direito de escolha e de abundância; havia mais casais que conversavam alegres, mais pessoas comprando, mais pessoas vendendo, mais pessoas regulando…. E eu cada vez me sentindo pior, cada vez sentindo mais vergonha, mais tristeza e mais perdigotos sobre/em mim…
Antes que o León me chame fecho os olhos e volto agora a ver o Pacaembu e seu deserto de sol e pavimento festivo. Essas pessoas aí fora, sobre o chão liso e devastado, me lembraram as vacas e a soja que crescem alegremente nos pastizales que também crescem, há tantos e tantos anos, no Brasil. Dificilmente há pior vetor de morte, destruição e devastação que a soja e as vacas. Dificilmente há alguma outra máquina de morte tão pop e sorridente como o Agro, tão querida há décadas no Brasil, tão inocentada, tão cheia de sol. Mas essa imagem me leva a outro lugar, essa imagem me remete a uma dessas impressionantes fotos aéreas de desmatamento e devastação em que o frame é quebrado por uma linha que separa a floresta opaca da destruição brilhante. Quando León vê essas fotos costuma gostar mais do lado brilhante, como alguns adultos “de bem” que conheço: sempre penso que os autores destas máquinas e cenas de destruição são meninos de 3 anos com uma enorme ansiedade no coração.
Pois bem, como nessa foto, a morte não está apenas de um lado. A morte circula: a morte é a condição de possibilidade do pasto, a morte é a ameaça atualizada sobre quem habita a floresta -a de árvores, saberes e fauna exuberante ou a de respiradores, vírus e parentes de última hora-. Morte é o nome do fazendeiro ou do patrão ou do alegre ignorante que, nesse gesto, está mais morto que todos os mortos. Morte não é o nome da enfermeira e nem do moribundo: elas se chamam luta, riqueza, opacidade laboriosa. Contra a alegria solar dos zumbis que matam -e que entre mais alegres pela “volta”, pelo “retorno”, mais zumbis se tornam e mais matarão-, a outra metade do frame nos chama a atenção sobre a efervescência barroca, indócil e indescritível (a menos que boa etnografia seja feita ou que bons diários ou poemas venham a emergir daí) da força, da inteligência, da generosidade, da entrega, das alianças agônicas e de toda a riqueza de transações afetivas, multiespecíficas, fabulativas e cosmopolíticas que a floresta/hospital sob ameaça é capaz. A morte é o default, é o método, o alimento e o destino: contra isso, para aquelxs cujo destino é a morte, o que resta é a luta e a riqueza das invenções, o tempo na sua intensidade, a sagacidade de dar e de perder, as relações no entrevero
Então recebo de volta o León na quinta e penso em como lhe ensinar sobre isto. Penso como não quero nunca “voltar”, “retornar”. Por enquanto, devo saber que estaremos mais tempo aqui e assim, e deveremos estar bem, e teremos que saber fazer um lugar decente no meio do pastizal de mortos; talvez um dia esse tempo acabe e devermos não esquecer, não fazer de conta, não celebrar de outra forma que não seja de luto. Penso que as noções práticas e os corpos da alegria, lá na frente, deverão ser outros (em luto longo e em luta firme); que não quero comemorar nunca o “fim da pandemia”, porque a pandemia só acabará quando o genocídio acabe, quando a necropolítica seja derrotada, quando sejamos felizes em virar índios e putas, quando aprendamos a recusar ou a nos proteger do capitalismo nas suas cheganças mais queridas e corretas… Talvez um dia adoeçamos, e talvez um dia não aguantemos mais, e talvez um dia precisemos arriscar para não enlouquecer, e talvez um dia eu queira ir pra dentro do hospital ou da floresta, y no echaremos pa` trás ni pa coger impulso.
Agora León me chama: vou deitar com ele e deixar que os nossos corações se aplaquem no cheiro.
São Paulo, 6 e 7 de junho de 2020.

