Da sátira de Benjamin Franklin aos efeitos no sono e saúde: O horário de Verão
Por Claudia R. C. Moreno, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP
Em uma manhã de primavera do século XVIII, Benjamin Franklin foi acordado por fortes ruídos urbanos parisienses, por volta das 6h. O resultado foi uma peça satírica publicada no Journal de Paris intitulada Um projeto de Economia. Nesse documento, Franklin fez sugestões para estimular os parisienses a acordarem mais cedo durante os dias de primavera e verão. Com o passar do tempo, esse documento foi compreendido como o primeiro registro da ideia para atrasar em uma hora os relógios durante o período de maior duração do dia, o horário de verão (HV). Posteriormente, no século XIX, um entomologista neozelandês sugeriu que os relógios deveriam ser atrasados em duas horas durante o mesmo período. A partir daí, o Reino Unido faria a adesão ao HV a partir de 1916. Independente do criador, a criatura tornou-se medida popular, afetando 1,6 bilhão de pessoas em mais de 70 países
Pensado como uma ferramenta econômica para o século XIX, o HV também foi sugerido como uma ferramenta de segurança pública, particularmente no Brasil. No entanto, não há respaldo científico para as duas afirmações na sociedade do século XXI. O HV foi concebido em um cenário histórico caracterizado por uma organização temporal do trabalho balizada pelo ciclo claro-escuro ambiental, com uma concentração absoluta das jornadas de trabalho entre o nascer e o pôr do sol naturais. Atualmente, contudo, o trabalho em turnos, incluindo o turno noturno, representa uma parcela extremamente significativa da alocação temporal da mão de obra, isso sem contar com a significativa expansão da economia baseada na sociedade 24/7, com trabalho remoto que avança para além dos horários comerciais convencionais. Do ponto de vista de segurança pública, este argumento também pode ser relativizado, visto que existem dados indicando um aumento sazonal na criminalidade, com pico justamente no verão.
O HV é implementado de forma abrupta, com um avanço de 1 hora no horário do relógio no seu início e o contrário no retorno ao horário convencional, diferindo absolutamente da expressão lenta e progressiva da sazonalidade natural. Portanto, o HV representa uma mudança abrupta da sincronização social sem a contrapartida do principal geofísico natural, o ciclo claro-escuro. Então, surge um desacordo entre a imposição de uma política pública, arbitrária, à natureza, resultando em um atrito temporal, um desafio adicional para a saúde humana.
Esse desafio temporal atinge diretamente a organização do sistema de temporização circadiano. Perturbações na expressão fisiológica do sistema de temporização circadiana incluem não apenas a perda do alinhamento entre os eventos cíclicos ambientais e a ritmicidade endógena, mas também o desacoplamento entre os componentes do sistema de temporização, elevando a susceptibilidade para consequências adversas, como exemplos a doença cardiovascular, as desordens neuropsiquiátricas e as disfunções metabólicas. Importantemente, a adoção do horário de verão poderia representar um desafio temporal suficiente para desencadear perturbações persistentes no sistema de temporização circadiano e, como consequência, levaria a efeitos negativos para a saúde.
As interações agudas entre o HV e a saúde referem-se aos momentos que sucedem cada uma das transições – entrada e saída do HV. A aparente negligenciável modificação de 1 hora no relógio resulta em aproximadamente uma semana de tempo de ressincronização do horário de despertar, além de impactar negativamente tanto na duração, quanto na eficiência do sono. As pessoas ficam mais vulneráveis à privação de sono no início do HV (transição do horário padrão para o HV) e dormem em média 40 minutos a menos nas primeiras noites da transição comparado às demais noites. Ocorre, ainda, uma quebra transiente da organização temporal interna, perdurando por 10 dias após cada transição do HV. Ademais, estudos apontam para instabilidade na saúde mental, redução no desempenho cognitivo e prejuízos gastrointestinais, além da elevação do risco cardiovascular e aumento da ocorrência de eventos cardiovasculares, como o infarto agudo do miocárdio, presente após a entrada do HV. Além disso, o HV também afeta agudamente aspectos como a ocorrência de acidentes de trânsito e de trabalho.
É importante ressaltar que, no plano individual, a velocidade de ajuste às transições do HV depende de múltiplos fatores, tanto biológicos, quanto ambientais, dando origem a uma grande variabilidade na susceptibilidade aos efeitos negativos associados ao HV. Também é importante notar o efeito do HV ao ampliar o acesso à luz na transição da tarde para a noite e reduzir a exposição à luz pela manhã gerando um sinal que promove uma tendência à vespertinidade na população, isto apoiado nos efeitos da luz sobre o sistema de temporização. Como efeito prático, temos um potencial de redução da duração do sono noturno, comprimido em função do novo regime de exposição à luz e da manutenção da agenda social da manhã. Este conflito entre o tempo biológico e o tempo social pode resultar em um jetlag social (JLS), com potencial de perdurar por todo o HV e gerar franca privação de sono. A vespertinidade é fortemente associada ao jetlag social, o qual, por sua vez, está associado aos transtornos de humor, ao baixo desempenho cognitivo, à obesidade e ao risco cardiovascular.
Por fim, existe uma vulnerabilidade adicional, relacionada com a ocorrência do HV em regiões de baixa latitude. Especificamente, mulheres vespertinas tendem a sentir maior desconforto frente ao HV, com persistência durante toda a sua duração.
Nos últimos anos, a comunidade científica internacional tem declarado seu posicionamento contrário à manutenção do horário de verão. Entre as associações científicas que apresentaram posicionamento público estão: American Academy of Sleep Medicine (AASM), a European Biological Rhythms Society (EBRS), a European Sleep Research Society (ESRS) e a Society for Research on Biological Rhythms (SRBR). O Conselho de Cronobiologia da Associação Brasileira do Sono (ABS) subscreve o posicionamento da ABS, também contrário à manutenção do horário de verão.
O fato é que Benjamin Franklin sequer propôs a mudança no relógio. Ele sugeriu que acordar e dormir mais cedo poderia ser benéfico para a economia, sem qualquer preocupação biológica. Ainda não há consenso se ele estava falando sério ou apenas provocando os parisienses ao notar o hábito mais vespertino deles. Falando sério ou não, a adoção do horário de verão parece estar com os seus dias contados.
- Texto Originalmente publicado em Revista Sono pela Associação Nacional de Sono

